RENASCIMENTO (PARTE 2)


Alta Renascença

A Alta Renascença cronologicamente engloba os anos finais do Quattrocento e as primeiras décadas do Cinquecento, sendo delimitada aproximadamente pelas obras de maturidade de Leonardo da Vinci (a partir de c. 1480) e o Saque de Roma em 1527. Foi a fase de culminação do Renascimento, que se dissipou mal foi atingida, mas seu reconhecimento é importante porque ali se cristalizaram ideais que caracterizam todo o movimento renascentista: o Humanismo, a noção de autonomia da arte, a emancipação do artista de sua condição de artesão e equiparação ao cientista e ao erudito, a busca pela fidelidade à natureza, e o conceito de gênio, tão perfeitamente encarnado em Da Vinci,Rafael e Michelangelo. Se a passagem da Idade Média para a Idade Moderna não estava ainda completa, pelo menos estava assegurada sem retorno possível.[14][19] Eventos como a descoberta da América e a Reforma Protestante, e técnicas como a imprensa de tipos móveis, transformaram a cultura e a visão de mundo dos europeus, ao mesmo tempo em que a atenção de toda a Europa se voltava para a Itália e seus progressos, com as grandes potências da FrançaEspanha e Alemanha desejando sua partilha e fazendo dela um campo de batalhas e pilhagens. Com as invasões que se seguiram a arte italiana espalhou sua influência por uma vasta região do continente.[20][21]
Foi na Alta Renascença que a arte atingiu a perfeição e o equilíbrio classicistas perseguidos durante todo o processo anterior, especialmente no que diz respeito à pintura e à escultura. Pela primeira vez a Antiguidade era compreendida como um todo unificado e não como uma sequência de eventos isolados, levando a arte a descartar a simples imitação decorativa do antigo e troca de uma emulação mais completa, mais essencial e também muito mais erudita.[14] Porém esse classicismo, embora maduro e rico, conseguindo plasmar obras de grande pujança, comparáveis à arte antiga, tinha forte carga formalista, espelhando o código de ética artificial, cosmopolita e abstrato que se impunha entre os círculos ilustrados e que prescrevia a moderação, autocontrole, dignidade e polidez em tudo, e que teve na pintura de Rafael e na música de Palestrina seus mais perfeitos representantes artísticos, e no livro O Cortesão de Baldassare Castiglione sua súmula teórica.[22] O idealismo que foi intensamente cultivado na antigüidade clássica encontrava uma atualização e, segundo Hauser,
Giovanni BelliniSacra conversazione, 1505-1510. Chiesa di San Zaccaria, Veneza
"De acordo com os pressupostos desta arte, pareceria inconcebível, por exemplo, que os apóstolos fossem representados como camponeses vulgares e artesãos comuns, como o eram tão freqüentemente e com tanto sabor, no século XV. Para esta arte nova, os profetas, apóstolos, mártires e santos são personalidades ideais, livres, grandes, poderosas e dignificadas, graves e solenes, uma raça heróica, no pleno florescimento de uma beleza madura e enternecedora. Na obra de Leonardo encontramos ainda tipos da vida comum, ao lado destas nobres figuras, mas gradualmente nada que não seja grande e sublime parece digno de representação artística".[22]
Apesar desse código de ética, era uma sociedade agitada por mudanças políticas, sociais e religiosas importantes em que a liberdade anterior desapareceu, e o autoritarismo e a dissimulação se ocultavam por trás das normas de boa educação e da disciplina, como se lê em O Príncipe, de Maquiavel, um manual de governo que dizia que "não existem boas leis sem boas armas", não distinguindo poder de autoridade e legitimando o uso da força para controle do cidadão, livro que foi uma referência fundamental do pensamento político renascentista em sua fase final e uma inspiração decisiva para a construção do Estado moderno. Assim, a grande diferença de mentalidade entre o Quattrocento e o Cinquecento é que enquanto naquele a forma é um fim, neste é um começo; enquanto naquele a natureza fornecia os padrões que a arte imitava, neste a sociedade precisará da arte para provar que existem tais padrões. Rafael resumiu os opostos em seu famoso afresco A Escola de Atenas, uma das mais importantes pinturas da Alta Renascença, realizada na primeira década do Cinquecento, que ressuscitou o diálogo filosófico entre Platão e Aristóteles, ou seja, entre o idealismo e o empirismo.[23] Nesse período se observou o paulatino deslocamento do maior centro cultural renascentista de Florença para Roma, com a proteção do papado e o crescente afluxo de artistas de outras partes.[14]

Cinquecento e o Maneirismo italiano

PontormoA Deposição da Cruz, 1525-1528. Santa Felicita, Florença
Cinquecento (século XVI) é a derradeira fase da Renascença, quando o movimento se transforma, se expande para outras partes da Europa e Roma sobrepuja definitivamente Florença como centro cultural, especialmente a partir do pontificado de Júlio II. Roma até então não havia produzido grandes artistas renascentistas, e o classicismo havia sido plantado através da presença temporária de artistas de outras partes. Mas com a fixação na cidade de mestres do porte de RafaelMichelangelo e Bramante formou-se uma escola local, tornando a cidade o mais rico repositório da arte da Alta Renascença e da sua continuação cinquecentesca, onde a política cultural do papado deu uma feição característica a toda esta fase. Boa parte dessa nova influência romana derivou do desejo de reconstituir a grandeza e a virtude cívica da Roma Antiga, o que se refletiu na intensificação do mecenato e na recriação de práticas sociais e simbólicas que imitavam as da Antiguidade, como os grandes cortejos de triunfo, as festas públicas suntuosas, as representações plásticas e teatrais grandiloquentes, cheias de figuras históricas, mitológicas e alegóricas.[14]
Na seqüência do saque de Roma de 1527 e da contestação da autoridade papal pelos Protestantes o equilíbrio político do continente se alterou e sua estrutura sócio-cultural foi abalada, com conseqüências negativas principalmente para a Itália, que além de tudo deixava de ser o centro comercial da Europa enquanto novas rotas de comércio eram abertas pelas grandes navegações. Todo o panorama mudava de figura, declinando a influência católica, perdendo-se a unidade cultural e artística recém conquistada na Alta Renascença e surgindo sentimentos de pessimismo, insegurança e alheamento que caracterizam a atmosfera do Maneirismo. Apareceram escolas regionais nitidamente diferenciadas em Roma, Florença, FerraraNápolesMilãoVeneza, e o Renascimento se espalhou então definitivamente por toda a Europa, dando frutos em especial na FrançaEspanha e Alemanha, tingidos pelos históricos locais específicos. A arte de longevos como Michelangelo e Ticiano registrou em grande estilo a transição de uma era de certezas e clareza para outra de dúvidas e drama que viu aparecer a Contra-Reforma e se dirigia para o Barroco do século XVII.[24]
Lutero aos 46 anos (Lucas Cranach, o Velho, 1529)
Um dos impactos mais importantes da Reforma Protestante sobre a arte renascentista foi a condenação das imagens sagradas, o que despovoou os templos do norte de representações pictóricas e escultóricas de santos e personagens divinos, e muitas obras de arte foram destruídas em ondas de fúria iconoclasta. Com isso as artes representativas sob influência reformista se voltaram para os personagens profanos e a natureza. O papado, porém, logo percebeu que a arte podia ser uma arma eficiente contra os protestantes, auxiliando em uma evangelização mais ampla e mais sedutora para as grandes massas do povo, e durante a Contra-Reforma foram sistematizados uma nova série de preceitos baseados na teologia contra-reformista, que determinavam em detalhe como o artista deveria criar sua obra de tema religioso. Mas assim, se por um lado a Contra-Reforma deu origem a mais encomendas de arte sacra pela Igreja Católica, a antiga liberdade de expressão artística que se verificara em fases anteriores desapareceu, uma liberdade que permitira a Michelangelo decorar seu enorme painel do Juízo Final, pintado no coração do Vaticano, com uma multidão de corpos nus de grande sensualidade, ainda que o campo profano permanecesse pouco afetado pelas novas regras, que eram bastante dogmáticas e moralistas [25][26] Apesar disso, as aquisições intelectuais e artísticas da Alta Renascença que ainda estavam frescas e resplandeciam diante dos olhos não poderiam ser esquecidas de pronto, mesmo que seu substrato filosófico já não pudesse permanecer válido diante dos novos fatos políticos, religiosos e sociais. A nova arte que se fez, ainda que inspirada na fonte do classicismo, o traduziu em formas inquietas, ansiosas, distorcidas, agitadas, ambivalentes, apegadas a preciosismos intelectualistas, características que refletiam os dilemas do século.[24]
Maneirismo, que cobre os dois terços finais do século XVI e depois se confunde com o Barroco, foi um movimento que tem gerado historicamente muito debate entre os historiadores da arte. Depois do século XVII ele passou a ser encarado com desprezo, como uma degeneração mórbida e afetada dos ideais clássicos autênticos. Nos dias de hoje, porém, essa visão já não permanece, tendo sido revisada através de duas vertentes da crítica. Para uns ele se manifestou em uma área geográfica tão vasta e de maneira tão polimorfa e tão distinta do Quattrocento e da Alta Renascença, que se tornou um dilema inconciliável descrevê-lo como parte do fenômeno original, basicamente classicista e italiano, pois parece-lhes que em muitos sentidos ele constitui uma completa antítese dos princípios clássicos de proporção equilibrada, unidade formal, clareza, lógica e naturalismo, tão prezados pelas fases anteriores e que definiriam o "verdadeiro" Renascimento. A consequência foi estabelecer o Maneirismo como um movimento independente, reconhecendo uma nova e vigorosa forma de expressão no que se chegou a ver como decadência e distorção, tendo sua importância realçada por esses traços fazerem dele a primeira escola moderna de arte. A outra vertente crítica, contudo, o analisa como um aprofundamento e um enriquecimento dos pressupostos clássicos e como uma legítima conclusão do ciclo do Renascimento; não tanto uma negação ou desvirtuamento daqueles princípios, mas uma reflexão sobre sua aplicabilidade prática naquele momento histórico e uma adaptação - às vezes dolorosa mas em geral criativa e bem sucedida - às circunstâncias da época.[27][28]

As artes no Renascimento

Nas artes o Renascimento se caracterizou, em linhas muito gerais, pela inspiração nos antigos gregos e romanos, e pela concepção de arte como uma imitação da natureza, tendo o homem nesse panorama um lugar privilegiado. Mas mais do que uma imitação, a natureza devia, a fim de ser bem representada, passar por uma tradução que a organizava sob uma óptica racional e matemática, num período marcado por uma matematização de todos os fenômenos naturais. Na pintura a maior conquista da busca por esse "naturalismo organizado" foi a recuperação da perspectiva, representando a paisagem, as arquiteturas e o ser humano através de relações essencialmente geométricas e criando uma eficiente impressão de espaço tridimensional; na música foi a consolidação do sistema tonal, possibilitando uma ilustração mais convincente das emoções e do movimento; na arquitetura foi a redução das construções para uma dimensão mais humana, abandonando-se as alturas transcendentais das catedrais góticas; na literatura, a introdução de um personagem que estruturava em torno de si a narrativa e mimetizava até onde possível a noção de sujeito.

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